As tentativas históricas e presentes de demandas políticas de ações afirmativas para a população afro-brasileira no campo político, educacional e no mercado de trabalho tentam tocar na lógica perversa das desigualdades raciais de diversos requintes acumuladas ao longo dos anos que atinge tal população em todas as classes sociais.
Se a “democracia racial” é a máxima da relação dos grupos de cor no Brasil, por que muitos afro-brasileiros vivenciam barreiras raciais e sociais tanto na ausência nos altos escalões do mercado de trabalho, quanto numa presença diminuta em tais locais, cuja vivência do racismo ainda se torna uma prática comum? Se a miscigenação faz parte da configuração social brasileira, por que tal diversidade não faz parte da configuração dos espaços de poder, riqueza e status social, majoritariamente preenchido pelo grupo branco brasileiro? Estamos alimentando uma grande contradição? Por que a presença de negros nos altos escalões de poder relaciona-se com as experiências de dores do racismo? A política de cotas nos concursos públicos capixabas, proposição do Deputado Roberto Carlos (PT), vão para além de permitir um processo seletivo específico entre os grupos desiguais, no caso os afro-brasileiros, já que possibilitam tanto um aumento de grupos excluídos, cuja barreira do racismo é um de seus impedimentos, quanto viabiliza uma nova organização social que permite a criação de “espelhos sociais” positivos para as futuras gerações dos negros no Brasil. Esses espelhos sociais quebrariam localizações fixas da população negra, como os estereótipos históricos que se alocam à essa população ao perigo, a violência, ao exótico, a irracionalidade e a pobreza.
A pergunta que se coloca na discussão de cotas para negros em concursos públicos na Assembléia Legislativa capixaba é: por que uma parte da sociedade conservadora, principalmente a elite, tende a ficar mais reacionária e sensível com um rechaçamento a tais políticas, do que com as exclusões que a população afro-brasileira convive diariamente, principalmente nas prisões e nos contatos policiais? O que está por trás disso? A definição de cotas em concursos públicos se direciona na disputa política por poder, status, riqueza e reconhecimento social, tanto das hierarquias raciais existentes, quanto da aceitação de que o racismo possibilita a perda materiais e simbólicas de muitos, quanto o ganho disso por outros.
No Brasil, a maioria negra é uma minoria social no que tange ao acesso a emprego, a uma vida digna, a educação e o reconhecimento humano paritário. E tal exclusão é reproduzida também pela camuflagem dos conflitos enraizados em nossas mentes, corpos e instituições sociais ao longo da formação da sociedade brasileira que se conforma e confina o lugar social dos negros como intocáveis. Então, tratar “desigualmente os desiguais” através das cotas em concursos públicos é possibilitar a conquista de direitos sociais negados e compreender que as trajetórias de vida dos grupos são díspares e que no fundo privilegia sempre os donos do poder que sempre tiveram privilégios e oportunidades, tendo o racismo uma das razões de tais ganhos sociais. Que o direito a uma cidadania plena, atrelado aos princípios humanitários, democráticos, igualitários e de justiça social estejam presente na vida de milhões de pessoas afro-brasileiras que foram um dos grandes povos que construíram o Brasil, e que ainda não usufruíram de suas grandes riquezas.
* Artigo publicado originalmente no jornal capixaba A Tribuna na página 23 da Seção “Tribuna Livre” no dia 06/02/2014.
** Professor do Ensino Superior. Doutorando em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFES. Membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFES.