Cotas raciais: Da negação à necessidade

Sérgio Pereira dos Santos

Grande avanço! Foi à aprovação, pela Câmara dos Deputados em Brasília, no Dia Nacional da Consciência Negra de 2008, do sistema de cotas raciais e sociais nas universidades públicas brasileiras. De acordo com o texto deliberado pelos parlamentares, 50% das vagas nas universidades será reservada aos alunos das escolas públicas, sendo que a metade desse percentual será distribuída aos que se integram os critérios étnico-raciais proporcionais à distribuição populacional estabelecidos pelo IBGE. O critério para o percentual de vagas para os alunos de escolas públicas será mediante a renda familiar per capita menor a um salário mínimo.

As cotas se inserem nas chamadas políticas de ações afirmativas, que nos últimos anos ganhou latente discussão na sociedade brasileira. Elas são medidas públicas e/ou privadas que tentariam diminuir as injustiças sociais de grupos, cujas diferenças que os caracterizam são utilizadas pra excluir e invisibilizar, no caso do Brasil, as mulheres, os negros, os indígenas, os idosos, etc. seriam sujeitos a ter direitos as tais mecanismos inclusivos. Assim, as polêmicas explicitadas no debate social das ações afirmativas, principalmente para os negros, mostram por um lado, as contradições étnico-raciais maculadas numa falsa “democracia racial”, defendida por vários arautos aquinhoados, e por outro, coloca em xeque as conseqüências históricas do processo atroz que os negros vivenciaram e ainda vivem, desde o século XVI no Brasil, vilipendiou seus direitos, negligenciou sua constituição histórica, sua totalidade humana, e, acima de tudo, cerceou suas liberdades civis, políticas, sociais e econômicas.

Quanto às discussões sobre as cotas, destaco a perspectiva, muito difundida por grupos sociais contrários a tais medidas, de que o problema no Brasil não é também a questão racial, mas sim e exclusivamente a sócio-econômica, ou então que “pobreza é tudo igual”. Sendo assim, não caberia a implantação de cotas para negros, mas sim para os pobres ou a efetivação de formas que melhorassem a vida dos mesmos possibilitando-lhes o acesso a universidade sem a criação das cotas.

Penso que essa idéia tem alguns equívocos, visto que a pobreza é uma coisa, e a questão racial, é outra, mesmo considerando relações recíprocas entre ambas, já que também as relações raciais devem ser consideradas, principalmente num país que de forma constante mascara suas relações de preconceito, de discriminação e de racismo, como é o caso do Brasil. E principalmente, como os dados e a própria realidade cotidiana nos evidencia, muitos negros que ascenderam economicamente, a barreira econômica superadas por eles não facilitou ou excluiu experiências racistas mesmo na ascensão à estratificação social, mostrando que o racismo opera em variadas classes sociais onde o negro possa estar, considerando o contexto de uma sociedade racista.

De acordo com o IPEA, de 1992 a 1995, o Brasil levaria 65 anos para acabar com a pobreza entre os negros e 52 anos para que estes chegassem ao mesmo patamar de pobreza dos brancos. O IPEA também indica que o Brasil levaria 67 anos para que brancos e negros alcançassem os mesmos níveis de igualdade educacional entre jovens de 15 a 24 anos. O instituto aponta ainda que, atualmente, a probabilidade de um branco chegar à universidade é de 19%, enquanto que a do negro é de 6,6%, e, que, quanto à média salarial, o negro recebe 53% do salário de um branco.

Dessa forma, até que ponto eliminar as condições de pobreza pode acabar direta ou exclusivamente com as relações raciais segregadoras e perversas? Nesse sentido, as condições de pobreza tendem a atingir a todos, porém, atinge mais os negros, principalmente por eles ter uma condição que, historicamente, foi constituída por relações que o invisibilisaram e despotencializaram enquanto sujeitos sociais. Assim, realçar as questões de pobreza para macular o racismo é um efetivo engodo forjado socialmente, cuja perpetuação do mesmo naturaliza as desigualdades sociais e raciais, privilegiando a elite branca, grupo que nas relações raciais e sociais no Brasil sempre foram os favorecidos. Nenhuma revolução na dimensão sócio-econômica da sociedade vai eliminar os problemas oriundos das relações de gênero, de sexo, de raça e de etnia, como ressaltou o Professor Thimoteo Camacho da UFES em sua pesquisa de pós-doutorado na UFSC.

Outra questão em favor das cotas é que com a sua implementação, os níveis da qualidade e do rendimento acadêmico não diminuíram, conforme pesquisa da UERJ, em virtude de médias iguais ou superiores de cotistas negros, pois estes apresentam grandes desempenhos, uma vez que imbuídos da consciência de que estar numa faculdade, pressupõe muitas vezes ser o primeiro de sua família a ingressar no ensino superior, mesmo com escassas condições de permanência do curso que as universidades disponibilizam, como destaca o professor mencionado.

Então, que o sistema de cotas nas universidades públicas esteja na dimensão da plausibilidade, da compreensão e consideração de processos justos para com os negros, que, no acender das luzes, estão apenas reivindicando o mínimo do mínimo, num mar de constante exclusão de outrora, do qual ainda vivem, vide os ranços e as variadas metamorfoses de mecanismos históricos que tendem a permanecer nas relações sociais e entre negros e brancos na sociedade brasileira.

Artigo escrito em dezembro de 2008 no contexto da aprovação do Projeto de Lei nº 180 pela Câmara dos Deputados em Brasília/DF. Muitas ideias aqui desenvolvidas foram frutos das discussões na Comissão de Estudos Afro-Brasileiros (CEAFRO) da Secretaria de Educação de Aracruz, no Setor de Diversidade. Agradeço a Profa. Mestre Rosalina Tellis Gonçalves pelas sugestões e pela leitura atenta e minuciosa do referido texto.

Professor do Ensino Superior. Doutorando em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFES. Membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFES.